quarta-feira, 28 de março de 2012

O Tratado dos Viventes

Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII” –
Luiz Felipe de Alencastro.


O argumento central do livro é que “a colonização portuguesa, fundada no escravismo deu lugar a um espaço econômico e social bipolar, englobando uma zona de produção escravista situada no litoral da América do Sul e uma zona de reprodução de escravos centrada em Angola”. Para o autor, as duas partes “se completam um só sistema de exploração colonial”.

Mais do que escrever um livro sobre a história do período colonial vivido pelo Brasil, Luiz Felipe de Alencastro mostra a importância de não analisá-lo como uma época reclusa ou apenas ligando-o às rédeas metropolitanas: é preciso enxergar além. É preciso enxergar um mundo ultramarino no qual a América portuguesa se incluía. A formação do Brasil e o sentido da colonização, vertentes delicadas dos estudos históricos brasileiros e, às vezes, evitada pelos historiadores, são lidadas pelo autor, que procura mostrar como o “Brasil se formou fora do Brasil”.

Os conflitos entre portugueses, espanhóis e holandeses no século XVII permitem vislumbrar o funcionamento deste sistema e as particularidades que o marcaram naquele século. Os traficantes portugueses arremataram todos os Asientos leiloados pela Coroa Espanhola durante a União Ibérica. Assim eles passaram a controlar o mercado escravista hispanoamericano. A mão de obra de africanos se tornava necessária pela grande mortalidade indígena no trabalho das minas, mas a Espanha não tinha estrutura para fazer seu próprio tráfico. Os desembarques dos assentistas se concentravam em Cartagena, Vera Cruz e Buenos Aires. Boa parte da redistribuição se fazia por terra, gerando uma grande mortandade entre os escravos. Durante o período do Asiento, os portugueses montaram duas fortalezas no litoral (Luanda e Benguela) e três no interior (Muxima, Maçango e Cambambe). Após 1640, parte da estrutura gerada pelo capital do Asiento se encaixa no sistema de tráfico integrado ao Brasil.

O autor aponta como formou-se a colonização: ela não era um processo já pronto, mas sim um resultado de aprendizado dos colonos. Em seguida, mudando de margem atlântica, a análise vai à África, focando nas rotas comerciais das caravanas, e como elas foram vencidas pelas caravelas, a partir de análises materialistas e de ideologias cristãs. A "transmigração" negreira do atlântico-sul novamente endossa o coro da impossibilidade de separação das costas atlânticas. Este "miolo negreiro" tinha como centro a capital lusa e Alencastro parte a mostrar como se articulava essa Lisboa com o tráfico de escravos, passando por banqueiros, asientistas e perseguições a cristãos-novos, e apresenta mais uma face ao processo, quando cogita o "comércio triangular negreiro”.

A sociedade escravista brasileira não se ocupava somente do trato negreiro. Para não negligenciar esse aspecto importante, o autor apresenta a escravidão indígena na América portuguesa. O interesse na preservação das sociedades indígenas passava por vários aspectos, desde um aliado em potencial aos assédios estrangeiros ao novo mundo, potencializados pela fraca presença militar, até a opção ideológica de evangelização. Em seguida, a evangelização negra é tratada por Luiz Felipe de Alencastro, que traz à tona a teoria fundamentadora de Padre Antônio Vieira: só os negros cristãos conheceriam o resgate eterno do Paraíso. Os outros, vivendo no paganismo na África, estavam condenados ao Inferno.


Engana-se, porém, quem pensa que o tráfico era só o tráfico. Ou, melhor dizendo, que era só um negócio. Era também uma estratégia. Era a maneira de Portugal segurar as pontas de seu império atlântico, e aqui se dá à expressão um sentido literal – segurar as duas pontas, a americana e a africana, do espaço sob seu controle. Do abraço entre as duas costas da bacia sul-atlântica, por mais que seja esse um abraço tétrico, baseado, como diz o título do livro, no trato dos viventes, vale dizer, no comércio de seres humanos, surgem as condições nas quais seria criado o Brasil. "De conseqüências decisivas na formação histórica brasileira, o tráfico extrapola o registro das operações de compra, transporte e venda de africanos para moldar o conjunto da economia, da demografia, da sociedade e da política da América portuguesa", escreve o autor.

O autor chama a atenção da importância dos índios para a construção de canoas e de barcos em estaleiros fluminenses e vicentinos. No Rio de Janeiro teria sido construído o galeão Padre Eterno, de 2 mil toneladas e que poderia comportar 144 canhões. Era o maior navio do Império Português, pertencente a Salvador de Sá. Finalizando o raciocínio sobre a relação entre a queda nas importações de africanos e o intenso apresamento de índios, o autor considera que: “O índios do Sul não suprem a falta de africanos no Norte, mas ficam cativos em São Paulo e no Rio de Janeiro cultivando alimentos que fazem as vezes dos produtos europeus, platenses e brasileiros nas praças de aquartelamento da América Portuguesa” (p. 198).
As invasões holandesas e seus conflitos, que dominam a próxima parte da análise, são um ponto alto na análise de Alencastro: a presença holandesa no nordeste da América Portuguesa e em Angola, acionou os colonos de modo que ficou provado que sem um lado não existia o outro. Protagonizado pelos fluminenses – surgindo a figura do paulista como "anti-metropolitano" e "anti-jesuíta", um quase vilão na construção deste mundo Atlântico –, o movimento brasílico inicia a retomada de Angola assim como a expulsão holandesa do nordeste. Fechando o desenvolvimento, o último capítulo tem como foco a "Angola Brasílica", fruto do universo do Atlântico-Sul, e a maneira com que foram impostos os interesses luso-brasílicos na África.
Ao afirma que “... na costa ocidental da África se cristaliza, em detrimento de Lisboa, uma aliança concreta, incontornável, unindo luso-brasileiros e luso-africanos” (p. 238), o autor está se referindo a uma importante remodelagem na relação entre colônia e metrópole. Ao mesmo tempo, defende que teria havido uma transformação geográfica no seio da América portuguesa. Na segunda metade do século XVII, quando Salvador Correia de Sá volta ao Rio de Janeiro, abre-se na capitania – que foi bem sucedida na expulsão dos goitacás – um vasto território a ser ocupado com engenhos de açúcar. Para aí também tinham se mudado colonos fugidos dos conflitos com os holandeses no Norte. Aí também se desenvolveriam, via porto do Rio de Janeiro, intensas relações comerciais com Angola e com Buenos Aires. No começo do século seguinte, com o ouro, a região seria ainda mais dinamizada.

O livro de Alencastro não pretende ter personagens centrais – seu centro é o oceano e o que se traficava por cima dele –, mas, se fosse para ter, dois ressaltam como evidentes candidatos ao posto de artífices maiores do império luso sul-atlântico, ambos, não por acaso, luso-brasileiros. O primeiro é o Padre Antônio Vieira, dono de uma das maiores inteligências do tempo, cuja influência alcançava cortes e dioceses ao redor do mundo, e cujo domínio do idioma e elegância de expressão fez Fernando Pessoa honrá-lo com o título de "imperador da língua portuguesa". Se a Igreja forneceu uma ideologia ao escravismo e ao tráfico, ao apresentá-los como fatores de evangelização, e se os jesuítas, dentro da Igreja, foram os que mais propagaram tal conceito, entre os jesuítas foi Vieira quem o apresentou com mais audácia. Ele aparece no livro um pouco por toda parte, mas com mais destaque quando Alencastro cita o sermão XIV, em que, dirigindo-se aos africanos, defende que foi Nossa Senhora quem os trouxe ao Brasil, para que encontrassem a verdadeira fé. "Oh", diz Vieira, "se a gente preta tirada das brenhas de sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e Sua Santíssima Mãe, por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!"

Ao finalizar, a pergunta é retomada: o que Luiz Felipe de Alencastro quer dizer com a “Formação do Brasil no Atlântico Sul”? Talvez queria compartilhar da idéia de Charles R. Boxer, que alega a existência de um imperium português. Talvez queira também mostrar que é preciso abrir os olhos para entender o Brasil como parte integrante de um processo e não como uma vítima da vontade lusitana. É claro que a metrópole teve a chance de exercer seu papel, e assim o fez, mas, assim como Portugal, Angola e Brasil também foram agentes históricos. E de tal maneira, formou-se um mundo entre essas partes. Simbiose, desenvolvimento mútuo que, inegavelmente, foi possível pela mentalidade lusa de governo e todos os entremeios sucedidos nos três séculos de colonização. Desta maneira, fica ainda mais inteligível o processo de formação do Brasil como "de um império a outro", conforme as idéias da Wilma Peres Costa. Por tudo isso, a obra de Luis Filipe de Alencastro é indispensável para, além do entendimento da formação brasileira, perceber e entender as relações humanas no tempo e espaço, de forma conjunta, o que é o cerne da análise historiográfica atual.

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